Hagitude – Uma Jornada para o Feminino Ancestral
- Claudia Gomes
- 6 de mar.
- 10 min de leitura
Existem livros que chegam até nós como um vento que sopra portas entreabertas, revelando caminhos que já intuíamos, mas ainda não tínhamos palavras para nomear. Hagitude, de Sharon Blackie, foi um desses livros para mim.
Minha jornada com essa leitura começou no grupo conduzido por Anna Rossetto, na Contoterapia. Um grupo de mulheres reunidas para explorar livros inéditos, muitas vezes ainda sem tradução para o português. Nossa leitura foi acontecendo aos poucos, semana após semana, com encontros que se tornaram rituais sagrados. Foram meses ouvindo, anotando, rabiscando no papel imagens que surgiam enquanto Sharon Blackie nos guiava por florestas míticas e vales de transição. Outras vezes, acompanhava no Kindle, exercitando minha leitura em inglês, absorvendo as palavras diretamente da fonte.
Eu amo esses momentos! São pausas na rotina onde mergulho em um território onde histórias antigas e novas se entrelaçam, onde a sabedoria do tempo se desenrola diante de nós. Se perdi dois encontros em todos esses meses, foi muito. Hagitude não foi apenas um livro, foi uma experiência viva.
A palavra Hagitude vem de hag, termo inglês que carrega tanto a imagem da bruxa quanto da anciã sábia. A cultura moderna, impregnada de medo da velhice, transformou hag em algo pejorativo, associando-a à decrepitude e à solidão. Mas Blackie resgata seu verdadeiro significado: a mulher que atravessou a floresta da vida, que colheu os frutos da experiência, que agora caminha com força e inteireza em sua anciandade. Este é um livro sobre essa travessia, o que significa deixar para trás a juventude e abraçar essa nova etapa com poder e presença.
Desde as primeiras páginas, Hagitude nos convida a olhar para nossa cultura e perceber como o envelhecimento feminino foi deturpado ao longo dos séculos. Em sociedades antigas, mulheres mais velhas eram as guardiãs do conhecimento, as parteiras da vida e da morte, as curandeiras que detinham os segredos das ervas e dos ciclos. Mas, em tempos modernos, a sociedade ocidental afastou a anciã para os cantos da invisibilidade, vendendo a ilusão de que devemos nos agarrar à juventude a qualquer custo.
Sharon Blackie abre seu livro compartilhando sua própria experiência de transição para a menopausa. Ela não escreve apenas como uma estudiosa ou uma pesquisadora da psique feminina, ela escreve como uma mulher que também se viu diante desse limiar, enfrentando os mesmos questionamentos e inquietações. Ao longo da narrativa, ela entrelaça sua história com mitos, contos populares e figuras femininas que desafiaram as convenções, trazendo à tona uma sabedoria ancestral que sempre existiu, mas que precisamos resgatar.

Uma das primeiras imagens que me marcou foi a floresta como metáfora da menopausa. Em muitas tradições, a floresta é o território da iniciação, o lugar onde o velho eu se dissolve para que o novo possa emergir. É um espaço de mistério, de desafios, de encontro com o desconhecido. Mulheres que entram na menopausa estão atravessando essa floresta interior, deixando para trás identidades construídas ao longo da vida, questionando seus papéis, suas vozes, suas verdades mais íntimas.
Neste ponto da narrativa, Blackie evoca o conto de Vassilissa, um dos muitos que permeiam a obra. É a história de uma jovem que, órfã de mãe, é enviada à floresta escura para buscar fogo na casa da temida Baba Yaga, a bruxa arquetípica do folclore eslavo. Para muitos, Baba Yaga representa o perigo e a destruição, mas Blackie nos mostra que, na verdade, ela é a iniciadora. Ela não dá nada de graça. Ela testa, desafia, exige que a jovem enfrente seus medos e confie em sua intuição. No final, Vassilissa retorna não só com o fogo literal, mas com o fogo interno da transformação, o fogo da sabedoria que agora arde dentro dela.
A menopausa é essa jornada. É ser enviada para a floresta, enfrentar Baba Yaga, perder as certezas e emergir carregando um fogo que ninguém mais pode apagar. Mas para atravessar essa passagem com força, precisamos estar dispostas a deixar para trás a menina boazinha que agrada, a mulher que se molda para caber no que esperam dela. Precisamos abraçar o desconhecido.
Este é um livro sobre morte e renascimento. Sobre a necessidade de atravessar o que é sombrio para encontrar o que é verdadeiro. É sobre mulheres que aprendem a viver em sintonia com sua própria essência, sem pedir desculpas por quem são.
Ao longo da narrativa, Blackie nos apresenta mulheres míticas que habitaram a margem entre a vida e a morte. Cailleach, a Velha Mulher das Terras Celtas, se destaca como uma das imagens mais poderosas deste livro. Diferente das deusas jovens e férteis, ela representa o inverno, o tempo da decomposição, do descanso, da sabedoria que só o tempo pode trazer.
Na mitologia celta, Cailleach é a guardiã das montanhas e das tempestades, a modeladora da terra. Durante o inverno, ela governa com sua força implacável, moldando o mundo com sua bengala de pedra. Mas quando a primavera chega, ela se retira, permitindo que a jovem deusa volte a reinar. Esse ciclo natural nos ensina que há um tempo de ser jovem, um tempo de dar e nutrir, e há um tempo de recolher-se, de tornar-se a guardiã da própria energia, de reinar sobre o que realmente importa.
E então, nos deparamos com outra imagem ancestral e impactante: as Sheela-na-Gigs, esculturas medievais de mulheres nuas, de corpos enrugados e vulvas abertas. Essas figuras, esculpidas em igrejas e castelos, desafiam a noção de que a velhice é o fim do desejo, da fertilidade simbólica, da potência feminina. Elas nos dizem que a anciã não é apenas aquela que observa a vida, ela é aquela que ainda dá à luz novas possibilidades, mesmo que de uma maneira diferente da juventude.
Aqui, Blackie já nos prepara para uma ideia central do livro: ser uma anciã não é apenas aceitar a velhice: é reivindicá-la com poder.

Para nos tornarmos verdadeiramente anciãs, precisamos atravessar o que Blackie chama de morte simbólica. Isso significa deixar para trás a mulher que fomos na primeira metade da vida e abrir espaço para quem estamos nos tornando.
A menopausa, vista muitas vezes como um declínio, é na verdade um rito de passagem, uma grande iniciação. Mas o problema é que, em nossa sociedade moderna, perdemos nossos rituais de transição. Em culturas tradicionais, mulheres que entravam nessa fase da vida eram honradas, recebiam orientações das mais velhas, passavam por cerimônias que marcavam sua entrada nesse novo papel. Hoje, somos deixadas sozinhas, sem referências, tentando descobrir por conta própria como atravessar essa floresta.
E é aqui que os mitos vêm ao nosso resgate.
Sharon Blackie resgata o conto de Ereshkigal e Inanna, uma história suméria que ecoa com força no percurso da menopausa. Inanna, a rainha dos céus, decide descer ao submundo para encontrar sua irmã, Ereshkigal, a deusa da morte. Mas para chegar ao seu destino, ela precisa se despir de tudo o que a define: suas joias, sua coroa, suas vestes. Chega ao mundo inferior completamente nua e, diante da irmã sombria, é morta. Mas esse não é o fim – sua morte é uma preparação para o renascimento.
Essa história nos ensina que não podemos nos tornar anciãs carregando tudo o que fomos antes. Há partes de nós que precisam morrer, a mulher que buscava agradar, a que acreditava que seu valor vinha apenas da juventude ou da maternidade, a que se encolhia para caber. A anciã nasce do que sobra depois que tudo isso se dissolve.
Ao longo de Hagitude, Blackie reforça que, na segunda metade da vida, a mulher selvagem que fomos na juventude e que foi suprimida pela necessidade de adaptação pode finalmente voltar.
Ela nos lembra que, antes de sermos domadas pelas expectativas da sociedade, todas nós já fomos criadoras, intuitivas, ligadas à terra, guiadas por nossos instintos. Mas crescemos e aprendemos a nos conter, a falar baixo, a não ser incômodas. O que Hagitude nos propõe é reivindicar essa mulher que sempre esteve dentro de nós, mas que foi silenciada.
E aqui, a história de Baba Yaga retorna, não mais como um conto distante, mas como um espelho. Baba Yaga é a velha bruxa que mora na floresta, a que ninguém ousa desafiar. Mas quem atravessa sua morada e passa por seus desafios sai transformado. Ela é a própria personificação da mulher que já não precisa da aprovação de ninguém, uma mulher que conhece seu poder e o exerce sem medo.
Quantas de nós passam a vida tentando evitar se tornar uma “bruxa” aos olhos dos outros? E se, ao invés de resistirmos, abraçássemos nossa própria Baba Yaga?
Estamos apenas no meio da travessia por Hagitude, e cada página traz novas imagens e arquétipos para nos guiar. Blackie nos lembra de que o envelhecimento não é um exílio da vida, mas um aprofundamento dela. Não se trata de se tornar irrelevante, mas de aprender a ocupar um novo lugar no mundo.
Uma das grandes mudanças que ocorre quando atravessamos a menopausa é a forma como experimentamos o tempo. A vida, que antes parecia uma linha reta cheia de metas e urgências, começa a se desenrolar de outra maneira. Não há mais pressa. Não há mais a ilusão de que tudo está à frente, esperando para ser vivido.
Sharon Blackie fala que a anciã é aquela que compreende a circularidade do tempo. Para muitas tradições ancestrais, o tempo nunca foi linear – ele se dobra sobre si mesmo, como as estações do ano, como os ciclos da lua. Para a mulher que chega a essa fase da vida, a relação com o tempo se torna um convite para habitar o presente com mais profundidade.
Aqui, ela nos apresenta Cerridwen, a grande deusa celta da transformação, guardiã do caldeirão do conhecimento e da inspiração. Cerridwen representa a sabedoria da anciã que já não corre atrás do tempo, mas o contém dentro de si. Ela é aquela que mistura os ingredientes da experiência e permite que eles se transformem lentamente, como um elixir alquímico.
O que Cerridwen nos ensina? Que nada precisa ser imediato, que o conhecimento real se destila ao longo dos anos, que algumas respostas só chegam quando estamos prontas para ouvi-las.
E então, surge a pergunta essencial: como estamos lidando com o tempo em nossas próprias vidas? Estamos tentando manter o ritmo frenético da juventude ou estamos aprendendo a habitar um novo tempo, um tempo mais profundo e verdadeiro?
Outro tema central na obra é o papel da criatividade na maturidade. Para Blackie, a segunda metade da vida é o momento de criar não para agradar, mas para expressar nossa verdade mais profunda.
Aqui, a história de Tejedora dos Destinos nos acompanha. Muitas culturas ao longo da história imaginaram a vida como um grande tear, onde mulheres sábias tecem os fios do destino. No mito grego, temos as Moiras, as três anciãs que fiavam, mediam e cortavam o fio da vida. Nas tradições nórdicas, há as Nornas, tecelãs do tempo. E em muitas outras culturas, encontramos essa mesma imagem: a mulher madura como aquela que fia os fios da existência, que entrelaça histórias, que borda o tecido do mundo com sua própria experiência.
Essa imagem da anciã como tecelã ressoa profundamente, especialmente para aquelas de nós que encontraram na arte, na escrita, no bordado, na cerâmica ou na pintura um caminho de expressão e conexão. Hagitude nos inspira que ser criativa não significa apenas produzir arte, significa estar em sintonia com o fluxo da vida e encontrar formas de expressá-lo.

Na anciã, a criatividade se torna um portal para o sagrado. Não é mais sobre perfeição ou técnica, mas sobre deixar fluir o que precisa ser dito, mostrado, compartilhado.
Outro aspecto essencial da jornada rumo à anciandade é o chamado para nos reconectarmos com a terra. Sharon Blackie nos convida a olhar para a natureza não como um cenário, mas como um ser vivo, do qual fazemos parte e ao qual pertencemos.
Nas histórias que ela compartilha, vemos mulheres que se tornam guardiãs das paisagens, das florestas, dos rios. A anciã, em muitas culturas indígenas, é aquela que sabe ouvir a terra, que lê os sinais do vento, que compreende os ciclos das estações.
Um dos arquétipos mais marcantes desse aspecto é a Velha do Tempo, que aparece em diversas tradições como a guardiã dos elementos. No folclore celta, temos a Cailleach, que já conhecemos, a velha que cria montanhas e controla o inverno. No Japão, há Ame-no-Uzume, a velha xamã que dança para trazer de volta a luz do mundo. Em cada uma dessas histórias, a anciã não é um ser passivo ou enfraquecido, ela é uma força da natureza, uma presença que molda o mundo ao seu redor.
E então, Blackie nos faz uma pergunta essencial: como podemos nos reconectar com essa sabedoria? Como podemos nos tornar guardiãs da terra, mesmo vivendo em cidades, mesmo sem acesso direto à natureza?
Ela nos lembra que cuidar da terra começa com pequenos gestos – plantar algo, respeitar os ciclos, observar o céu, ouvir os pássaros, sentir o vento na pele.
A anciã é aquela que aprende a estar presente. Que reconhece que seu corpo é parte da terra e que sua sabedoria vem dessa conexão profunda.
Finalmente, chegamos a um dos temas mais profundos do livro: a relação da anciã com a morte.
Se há algo que a sociedade moderna teme mais do que o envelhecimento, é a morte. Mas, como Sharon Blackie nos mostra, a anciã é aquela que caminha lado a lado com a morte, não como uma inimiga, mas como uma velha amiga.
Aqui, ela nos apresenta a história da Mulher dos Ossos, um dos contos mais simbólicos de Hagitude. Em muitas tradições, encontramos essa figura: a mulher que coleta ossos no deserto, que junta os restos do que foi perdido e os transforma novamente em vida.
Este conto nos lembra que a morte não é o fim, é parte do ciclo da regeneração. Assim como as folhas caem no outono para alimentar o solo, assim como o inverno prepara a terra para a primavera, nós também precisamos aprender a aceitar e honrar os ciclos de morte e renascimento em nossas próprias vidas.
A anciã, então, não é apenas aquela que sabe viver, ela é aquela que sabe morrer. Ela compreende que deixar ir é necessário. Que algumas coisas precisam ser dissolvidas para que o novo possa surgir.
E no final, Hagitude nos faz um convite: como queremos atravessar essa última jornada? Como queremos encarar a velhice e, um dia, a morte? Com medo e resistência? Ou com a coragem e a dignidade de quem sabe que tudo faz parte de um grande ciclo?
Este livro não é apenas uma leitura – é um rito de passagem. Uma travessia.
E agora, ao final dessa jornada, me pergunto: o que queremos fazer com esse conhecimento? Como queremos habitar nossa própria hagitude?
Talvez a resposta esteja em simplesmente viver com autenticidade, sem medo de ocupar espaço, sem medo de nos tornarmos as bruxas, as guardiãs, as velhas sábias que sempre fomos destinadas a ser.
Porque a anciã não é um fim.
Ela é o começo de algo ainda mais profundo.
Por Cláudia Gomes
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