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As Fiandeiras da Memória: Bordamos Histórias, Tecemos Destinos

Enquanto deslizo a agulha pelo tecido, vejo as linhas se entrelaçando, formando desenhos que antes eram apenas possibilidades. Penso no gesto repetitivo, quase ritualístico, que há séculos acompanha as mulheres. Bordar, fiar, tecer. Mas o que estamos costurando, afinal? Apenas tecidos? Ou estamos entrelaçando também as histórias que nos habitam?


Há um fio invisível que liga o ato de contar histórias ao gesto de fiar e tecer. Um fio que atravessa culturas e séculos, unindo palavras e fios, enredos e tramas, memória e matéria.


Isso não é apenas metáfora. O próprio nome da palavra “texto” vem do latim textum, que significa “tecido”. O que um escritor faz ao compor uma história é o mesmo que uma tecelã faz ao entrelaçar fios: ambas constroem narrativas. Ambas organizam o caos em sentido.


Mas essa relação entre contar histórias e fiar vai além das palavras. Ela está gravada em nossas mitologias, em nossos gestos ancestrais, em nossa própria pele.


Na Grécia antiga, existiam as Moiras, três irmãs que seguravam os fios do destino de cada ser humano. Cloto fiava o fio da existência, trazendo a vida ao mundo. Láquesis tecia os caminhos, decidindo o curso de cada jornada. Átropos, com sua tesoura afiada, cortava o fio no tempo certo, encerrando a trama. 


Nas terras nórdicas, encontramos as Nornas, mulheres sábias que teciam os fios da realidade aos pés da árvore do mundo, Yggdrasil. Urd segurava o passado, Verdandi moldava o presente, e Skuld trançava o futuro. No antigo mundo celta, as mulheres fiavam e bordavam símbolos de poder em mantos e tecidos, costurando proteção e identidade em cada ponto. Para elas, tecer era muito mais do que criar tecidos, era entrelaçar magia, destino e sabedoria. Esses mitos atravessam os séculos para nos lembrar de algo essencial: nós somos as fiandeiras das nossas próprias histórias.


Durante séculos, quando as mulheres tinham pouco acesso à escrita, o bordado se tornou sua forma de contar histórias. Na Idade Média, enquanto os homens escreviam crônicas sobre guerras e conquistas, as mulheres bordavam narrativas inteiras, registrando suas vidas em fios e tecidos. A Tapeçaria de Bayeux, com quase 70 metros de extensão, conta a história da conquista normanda, um testemunho visual e têxtil da história. Nas comunidades indígenas, os tecidos ainda trazem símbolos sagrados, guardando mitos, genealogias e a conexão com o espírito da terra. Nas casas de nossas avós, os bordados nos contam histórias silenciosas, pedaços de vida entrelaçados em linhas coloridas. O que são essas peças, afinal, senão histórias bordadas no tempo?


Em muitas culturas, bordar e narrar andavam juntos. As mulheres se reuniam ao redor do fogo ou do tear e, enquanto suas mãos seguiam os fios, suas bocas davam vida às histórias. Era ali, nesses círculos de fiandeiras, que as mais velhas ensinavam as mais novas, transmitindo sabedoria através de contos e canções. Era ali que as dores se transformavam em palavras, ganhando uma forma compreensível, menos pesada. Era ali que as mulheres podiam se enxergar umas nas outras, descobrindo que suas histórias eram interligadas como os fios de um mesmo tear. E assim, ao longo dos séculos, bordar e contar histórias se tornaram um mesmo gesto: o de dar forma ao invisível, transformar o caos em ordem, criar beleza a partir do que parecia apenas fragmentos dispersos.


Mesmo em tempos modernos, essa conexão ancestral entre bordado, escrita e memória continua viva. Quando escrevemos, nos escutamos. Quando bordamos, nos encontramos. Quando contamos nossas histórias, nos curamos. E é por isso que nasceu o Oráculo das Memórias. Um círculo onde as mulheres voltam a fiar, não apenas  com lã ou algodão, mas também com as linhas das suas próprias lembranças. Aqui, cada palavra escrita é um fio reencontrado. Cada bordado é um ponto de reconexão. Cada história compartilhada é um pedaço do nosso próprio tecido interno sendo restaurado. O bordado, a fiação e a escrita sempre foram portais de transformação.


Existe algo de mágico nesses gestos ancestrais, algo que atravessa o tempo e resiste, mesmo quando tudo ao redor se desfaz. Quando seguramos um fio entre os dedos, quando alinhavamos palavras sobre o papel, quando puxamos a linha e vemos um ponto surgir, estamos fazendo muito mais do que apenas criar, estamos acessando um saber antigo, um espaço onde a memória, a intuição e a imaginação se entrelaçam.


Sempre pensei que a escrita fosse o lugar onde eu mais me encontrava, mas percebo que esse encontro acontece também no silêncio do bordado, no ritmo cadenciado do fio passando entre os dedos, na repetição que embala a mente e permite que as histórias emergem. E percebo também que esse encontro não precisa ser solitário.


Se por séculos as mulheres se reuniam para fiar e contar histórias, por que não resgatar essa roda? Por que não criar um espaço onde possamos voltar a fazer juntas aquilo que sempre fizemos, mas que o tempo moderno nos fez esquecer? Imagino um círculo de mulheres, sentadas em cadeiras, no chão, com suas mãos ocupadas em bordados, novelos, fios, cadernos. Algumas escrevem, outras costuram, outras apenas escutam. No centro, um espaço vazio, como um vórtice invisível, onde as histórias que foram ditas ou escritas parecem pairar no ar.

A princípio, chegamos com as mãos inquietas, a mente dispersa, os olhos carregados das preocupações do dia. Mas conforme os gestos se repetem, algo começa a mudar. As primeiras palavras são tímidas, os primeiros fios ainda se embaraçam. Mas então alguém puxa um fio mais profundo, uma lembrança, uma voz que há muito tempo não falava. O espaço se abre. As palavras vêm. O fio desliza. A agulha passa.


O bordado cresce como uma história que vai se revelando, ponto a ponto. Cada mulher ali segura um pedaço do seu próprio fio, da sua própria narrativa. Algumas bordam lembranças de infância, outras deixam que os fios contem o que ainda não conseguem dizer em palavras. A linha costura não apenas tecidos, mas memórias, emoções, partes de nós que estavam soltas e agora começam a se organizar em um novo padrão.


E no final, quando olhamos ao redor, percebemos que o que criamos não foi apenas um tecido ou um texto, mas um oráculo. Um grande oráculo tecido pelas mãos e vozes de todas. Porque ao fiarmos juntas, ao bordarmos lado a lado, ao darmos forma ao que antes era invisível, criamos algo maior do que nós mesmas. Um espelho onde cada uma pode ver um pedaço de sua própria história refletida na história da outra.


E esse oráculo não responde com palavras exatas, mas com símbolos, com texturas, com imagens. Ele nos diz, através das linhas e das narrativas compartilhadas, que pertencemos umas às outras, que nossas histórias importam, que aquilo que nos atravessa não precisa ser carregado sozinha.


Imagino essa roda se formando. Imagino mulheres chegando com seus novelos de vida, trazendo fios soltos que, juntas, trançamos até formar algo novo. Imagino as palavras sendo fiadas como quem tece um destino. Imagino as memórias ganhando corpo, não apenas na escrita, mas no gesto, no toque, no entrelaçar de mãos e vozes.


E então, no final, quando nos despedimos, sabemos que aquele tecido invisível continuará existindo. Porque cada fio que foi tecido entre nós seguirá vibrando, pulsando, guardando as histórias que precisavam ser ditas.


Se esse chamado ecoa dentro de você, então o círculo está se formando. Traga seus fios, sua voz, sua história. O oráculo já começou a ser tecido.


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Por Cláudia Gomes 


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